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segunda-feira, 27 de junho de 2016

Delicadezas no Ato e Retrato do Nu [Fotografia et al. #5]

[O texto a seguir foi originalmente publicado na quinta edição da revista Fotografia et al. em junho de 2016 https://issuu.com/fotografiaetal/docs/revista_fotografia_et_al_-_e005_-_j]




Delicadezas no ato e retrato do nu

Posar nua é entrega. Poucos profissionais da fotografia possuem a sensibilidade de compreender que corpo é expressão e que a modelo, ao dispor-se para a câmera, precisa confiar em quem a fotografa. É um trabalho em equipe, precisa haver cumplicidade e respeito mútuos. Os profissionais que possuem a sensibilidade de captar que corpo é muito mais que imagem, é história, memória, traumas, identidade, além de veículo para expressão e arte, da modelo, são os que captam imagens poderosas. É importante respeitar a modelo. Respeitar sua doação, compreender que é um ato de generosidade e coragem dispor-se às câmeras alheias.
Entre 2007 e 2014 posei nua para diversos(as) fotógrafos(as). Foram mais de 60 pessoas com diversos graus de experiência, desde o estudante que tremia ao fotografar e dizia “faz o que você quiser”, ao “dedo nervoso” (mudo, não para de clicar freneticamente, se escondendo atrás da câmera), até o profissional que sabe exatamente o que quer, trata a modelo com educação, conversa sobre o briefing, e já deixou a luz pronta em seu estúdio. Dessa experiência aprendi que um bom trabalho é realizado com estudo, prática, doação e boas relações humanas.
A sessão fotográfica sempre me pareceu uma “dança dialógica” entre fotógrafo(a), modelo e equipe. A equipe precisa compreender a proposta do trabalho. A modelo cria opções de poses a partir de orientações e de seu repertório pessoal. Um diálogo, então, deve ser estabelecido. O fotógrafo ao orientar a modelo cria imagens. Há um ritmo, um “flow” na sessão (ou dança), um aquecimento, o ápice e então o cansaço. Esse ritmo deve ser escutado e pertence a todos os envolvidos.
Como modelo, adquiri a consciência de que ser fotografada é tornar-se imagem. Por isso, é preciso atenção aos significados que podemos construir enquanto corpo que performa diante de uma objetiva. A seleção do que a modelo propõe é responsabilidade do fotógrafo e por isso a modelo deve confiar em seu olhar para que se sinta à vontade e consiga doar-se na sessão.
A primeira (e última) fotógrafa a quem posei fui eu mesma. Posar foi como um palco para me expressar e, por que não, para me conhecer. Cada mulher que posa nua o faz também como ato de autoconhecimento. Comecei a posar quando estudava Artes Visuais, sequer tinha 18 anos mas já buscava me entender como mulher e como performar o gênero feminino. Fotografar-me fez parte do percurso de inventar e experimentar possibilidades de ser.
Para as mulheres, a questão de sua imagem é bastante carregada de importância, não só em termos pessoais, mas em termos culturais e históricos. Segundo o crítico de arte John Berger, em seu livro clássico Ways of Seen, “In the art-form of the European nude the painters and spector-owners were usually men and the persons treated as objects, usually women”. Na história da arte, a mulher foi incontáveis vezes representada. Em nossa cultura, infelizmente, o valor da mulher muitas vezes passa por sua aparência. Esse peso cultural dado à imagem feminina pode gerar angústia e sofrimento. Mesmo a modelo profissional, enquadrada no estrito padrão de beleza fashion, carrega inúmeras preocupações, inseguranças e ansiedades quanto à sua aparência. Compreender criticamente que a imagem produzida de uma mulher implica valores históricos, culturais e psicológicos é uma responsabilidade que deve ser assumida por quem trabalha com criação de imagens do feminino. Fazer arte é, inevitavelmente, um ato político — é melhor fazê-lo com consciência.
Fotografei algumas mulheres nuas também. Nenhuma modelo profissional, apenas amigas que buscavam algo e usaram a fotografia como meio para ajudá-las nessa busca pessoal. Cada uma dessas mulheres é única, cada corpo carrega uma vivência própria. Foi ótimo conversar com cada uma delas antes de começar a fotografá-las. É essencial uma aproximação e diálogo empático entre fotógrafo e modelo antes da sessão começar. O corpo nu é potência, a nudez será vestida pela modelo e saber um pouco de sua história ajuda a captar o corpo em sua melhor expressão, enquanto performance, na sessão.
Decidi não mais posar para outras pessoas (raras excessões). Cansei de fotógrafos pouco profissionais que descumpriam os acordos ou que possuíam segundas intenções. Claro que há bons profissionais, mas os ruins fazem não valer a pena arriscar. Percebi também que me divirto muito
mais sendo modelo de mim mesma e assumindo o que chamo de “Autonomia do Retrato”. Me inspiro em fotógrafas e artistas como Francesca Woodman, Hester Scheurwater, Rita Lino, Cindy Sherman, Ana Mendietta, Helga Stein, Sophie Calle, entre outras. É sempre importante perceber uma tradição artística que lhe precede e dialogar com ela.
Então, performo para um “olho invisível” que capta o ângulo, a luz e a pose que eu desejar. Gosto de intervir digitalmente e aproximo minhas fotografias à arte digital (talvez porque também flerto com a pintura). O enquadramento é mais difícil de comandar pois a posição da câmera é fixada no instante que antecede o ato. Em dez segundos, de fotógrafa viro modelo. O fluxo do autorretrato é menos fluido do que desempenhar apenas um papel, fotógrafa ou modelo. É mais anguloso, em zigue-zague. Por outro lado, é interessante me surpreender com o que a câmera captou e ir fazendo ajustes até que a imagem esteja montada e encenada como eu preferir. Criar o cenário, desenhar a luz, performar diante da câmera e intervir digitalmente faz desses autorretratos uma produção híbrida onde posso evocar minha experiência com teatro, dança e pintura.
Perceber que emprestei meu corpo para fantasias alheias que muitas vezes representavam uma noção de feminino que pode violentar a dignidade e saúde emocional de muitas mulheres me fez repensar meu papel. A consciência de que a imagem da mulher tem densa tradição histórico-cultural, que cada corpo é repleto de memórias, é grávido de múltiplos sentidos e que há um inevitável posicionamento político ao representar um corpo, é essencial para exercer a profissão com responsabilidade. Acima de tudo, respeitar quem trabalha com você, ser confiável, cumprir compromissos e levar seu trabalho e o trabalho da modelo e da equipe a sério, são o básico para quem vai fotografar nu, ou qualquer coisa.

http://iphotochannel.com.br/fotografia-de-nu-e-sensual/revista-de-fotografia-lanca-edicao-dedicada-ao-nu-artistico-nsfw


Epifania #5


Ontem, dia 26 de junho, tive o prazer de ser uma das 14 artistas a exporem fotografias na quinta edição do evento Epifania Cultural, com curadoria de Dani Botelho. A exposição está sendo em uma tradicional casa de jazz na Vila Madalena (SP), a charmosa e aconchegante Qualcasa. Vale a pena passar lá e ouvir um bom som, ver umas artes e ter boas conversas de copo na mão.    

Tantas peles

Pássaro Negro